terça-feira, 22 de junho de 2010

- A Morta

Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um único desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte, como uma prece.
Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Eu a encontrei e a amei. Isto é tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha terra ou em outro lugar qualquer. E depois ela morreu.

(Há uma tentantiva de explicação de como ela havia morrido, a única descoberta foi que ela havia saído um dia e pegado um resfriado, que durou uma semana...)

Ontem, regressei a Paris.

(Quando ele volta, resumindo, ele sentiu a morte dela novamente, não podia ficar ali, ao sair deu de cara com o espelho que ela havia mandado colocar...)

Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! Recordação! Recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor. Como sofro!

(Saiu, e sem perceber dirigiu-se ao cemitério, lá ficou até o anoitecer, quando pensou em ir embora teve um desejo...)

Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.
E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!

(Andou pelo cemitério lamentando-se da tristeza que era tudo aquilo, se escondeu em uma árvore e esperou o anoitecer completo, após, saiu a procura do túmulo da amada, não à encontrava, sentou-se e ouviu um barulho, a laje onde estava sentado se movia, de lá saiu um esqueleto, e logo depois ele leu o que havia escrito na cruz...)

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."
O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, riscou o que ali estava escrito e escreveu novamente:
"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a morte do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."

(Ele então para e olha para todos os túmulos do cemitério e percebe que todos estavam fazendo o mesmo...)

E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.
Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.
Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.
E sobre a cruz de mármorede sua amada onde há pouco lera:
"Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:
"Tendo saído um dia para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu".
Parece que me encontraram inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.
Guy de Maupassant (31 de maio de 1887)

Onde foi parar a Verdade? Onde estão as pessoas que a exerciam? Onde?! Equalize!

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